sábado, 29 de junho de 2013

Aquela velha conhecida

"A vida é feita de perdas" me disse aquela velhinha no jantar de família. Acho que era minha tia avó, ou tia avó da minha tia avó. Algo assim.
Não importa o parentesco, aquela senhorinha de olhos grandes, castanhos e tão parecidos com os meus, estava certa.
Eu sorri para essa minha parenta de sei lá que grau, porque ela dissera "feita de perdas", mas não "só de perdas." A tia (avó, tia avó?) era sábia. Suas costas eram encurvadas de tanta sabedoria e segredos, eu que não argumentaria com aquela mulher.
Sorri também porque, através daquelas rugas, bem embaixo do mel daqueles olhos, eu me vi. E ela também podia se ver em mim. A senhorinha riu para mim. "Você vai ser feliz, garota", ela me disse. E eu sorri novamente. Eu que não argumentaria com aquela mulher, com as costas encurvadas de tanta sabedoria e segredos.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Procura-se

Valentina e seu casaco caminhavam pelo campo, quebrando geadas e espantando quero-queros. O nariz e as bochechas estavam tão vermelhos quanto sua luva e cachecol. Procurava algo, a Valentina, entre as nuvens, entre as flores, mas não encontrava. Não encontrava, talvez, porque não sabia ao certo o que procurava. Suspirou, jogou um cacho insistente para trás e voltou pelo mesmo caminho que veio, talvez assim, lembraria do que procurava e não encontrava, de jeito nenhum.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Café para dois

Fazia tempo que ela não sentava para tomar café com o marido. Olhou para o céu azul e decidiu que hoje seria um bom dia.
-Os hojes costumam serem bons dias - disse enquanto dobrava uma toalha vermelha antiga e separava duas canecas laranjas.
Saiu de casa assoviando, com as mãos enrugadas cheias do que carregar. Quando chegou ao Cemitério Municipal, uma brisa fresca agitou seus cabelos de prata. Sorriu. Geraldo a esperava logo na entrada. Amélia abriu os portões de ferro, chegou perto de Geraldo, estendeu a tolha vermelha no granito e olhou para o rosto do marido. Parado. Em preto e branco. Serviu as duas xícaras, bebeu uma. Esperou que esfriasse o café da outra.
-Sinto saudades - sussurrou Amélia para a lápide, enquanto passava os dedos pelas letras negras.

Geraldo Pereira 
Marido e pai amado
1944-2004

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Pra ti, Pedro

Por trás dessa cortina cinza são teus olhos verde grama que me alegram, Pedro.
Nunca fui de te escrever, nem tem essa necessidade, posso te ligar e em dois minutos estou aí, abraçada contigo. Mas, eu não sei, essa chuva e essa distância me fizeram pegar a caneta e um pedaço de papel. Eu não vou te mandar essa carta, Pedro. Até porque, em dois dias tu estás aqui de novo, comigo. Mas, como eu disse, deve ser essa chuva que me deixou molenga. Vou escrever só para cansar a mão, gastar a tinta e a saudade. Depois guardo essa folha num caderno, num livro.
Essas linhas não tem função pra ti, Pedro. Só me servem para imaginar teus olhos e tua boca. Servem para ocupar minha mente vazia, antes que ela vire oficina do diabo. Servem para encurtar a espera. Para esquecer desse chuvisco rabugento. Não gosto de chuva indecisa, tu sabe, Pedro.
Vê se volta logo, a tinta e o papel estão acabando.
Volta logo e enche de verde esse meu dia cinza.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Colo de mãe

Não gostava que mexesse em seu cabelo. Não era qualquer pessoa que tinha permissão para desmanchar seus cachos, afastar sua franja dos olhos.
Mas, com a mãe não tinha problemas. Deitada no colo da mulher mais linda do mundo, Valentina deixou-se ser cuidada. Os dedos macios da mãe acariciavam a filha, devagar. Com o amor e calor que mães costumam ter. Valentina mordeu os lábios, passou os dedos, com as pontas sempre geladas, nos olhos e sorriu.
Foi deixando-se ir, devagar, até adormecer. Até cair em um sono tranquilo, mas escuro. Sem nenhum sonho.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Boniteza triste

Aquela névoa toda, aquele véu branco, agradou e chateou Valentina. Era bonito, mas pesado e triste. Uma tristeza bonita, uma boniteza triste. Toda aquela brancura ardia seus olhos escuros e gelava a ponta de seu nariz.
Valentina agarrou-se ao seu casaco, na esperança que ele esquentasse seu corpo e alma. Muita responsabilidade para um pobre casaco. Mas ele sabia como lidar com isso, acompanhava a jovem há anos, não seria agora que falharia. Protegeria Valentina da tristeza fria daquela manhã. Deixando-a absorver apenas a bonita saudade que aquela névoa trazia.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Passou

Abriu a porta da casa e ao entrar trouxe o frio junto com ela. Ria um riso fácil e amigável. Era bom ver um sorriso conhecido no meio daquela confusão. Se abraçaram com os olhos. Sorriram. Contaram as novidades do dia. Comeram bergamotas. Choraram... de rir. Esqueceram o frio que entrara pela porta horas antes.
Dormiram, então, sem o nó na garganta e aperto na boca do estômago que perturbara uma delas, durante todo o dia.

sábado, 8 de junho de 2013

Tic, tac

"Droga de tempo" ela me disse, olhando para o relógio de pulso.  Era bonitinho ver suas sobrancelhas se franzirem, indignadas. O tanto quanto era permitido a sobrancelhas se indignarem.
Fiquei a observando. Eu a perderia? "droga de tempo". Eu a veria logo? "droga de tempo." Ela lembraria de mim? "droga de tempo." Ela me olhou de volta, há quanto tempo eu a encarava? "droga de tempo."
-Eu preciso ir.
-Eu sei.
"Droga de tempo."

Evidências

Da noite anterior restou teu perfume no lençol e um beijo vermelho na fronha do meu travesseiro. Notei hoje pela manhã, enquanto organizava a bagunça que fizemos. Eu ainda meio fora do ar, não muito aqui e teus lábios vermelhos desenhados no tecido branco me trouxeram de volta. De volta a Terra e direto para ontem à noite. 
Sorri e me recusei a trocar de fronha, de lençóis. Eu ainda precisava de evidências de ontem. De provas que minha imaginação aguçada não tinha aprontado comigo. Que tudo realmente acontecera.
Então, deixei teu beijo e teu cheiro na minha cama, até que tu pudesse estar ali, novamente. Comigo.  

terça-feira, 4 de junho de 2013

Parede

A parede branca ficou constrangida. Não sabia o que fazer com aquela moça. Ela chorava tanto, recostada ali. Os ombros da pobrezinha sacudiam e as contas se batiam contra a pedra fria.
A parede não sabia o que fazer, estava agoniada, não tinha braços para abraçar, olhos para consolar. Então, ficou ali, impassível, gelada. Vendo a jovem chorar, sofrer, quebrar-se.
A garota e a parede ouviram passos. A garota fechou a porta e cessou o choro. A parede permaneceu em silêncio. Os passos foram embora. O choro voltou. Foi embora. Voltou. Foi embora. Então, a garota também foi-se. E a parede continuou ali, impedida de ir para onde queria. Abraçar quem precisava. Teria chorado, se fosse possível para uma parede chorar, mas não era, então ela ficou ali, fazendo o que lhe cabia. Silêncio.