segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Florescer

Plantaram o ipê para ela logo que nascera. Nos primeiros anos de vida da menina e do ipê, era comum os membros da família dizerem:
- A árvore é nova, querida. Florescerá daqui há alguns anos.
A menina sorria em resposta. Gostava da árvore como era e não tinha pressa em alterar nada dela. Conforme foi crescendo a sombra da árvore foi lhe servido como abrigo. Na sombra do ipê ela se protegeu do frio, viu os pássaros fazerem ninhos, leu muitos dos seus livros favoritos e, não contem a sua mãe, deu seu primeiro beijo.
Muitos anos se passaram. Muitas primaveram deixaram seu colorido por todo o jardim. Mas o ipê ainda era apenas folhas. Quando a menina já se tornara uma moça era comum dizerem:
- Talvez seja um tipo raro de ipê, estes demoram mais para florescer.
Nesta hora sempre aparecia alguém para contar a moça que, na casa do Fulano ou do Beltrano, havia um ipê branco que florescera muitas décadas depois de ser plantado. A menina que já era uma moça, sorria e achava um pouco irritante se meterem na vida de seu ipê, porém não comentava nada e continuava achando a árvore perfeita.
As folhas do ipê eram, de fato, perfeitas. Nasciam verdes e vibrantes. Os galhos eram fortes, de um marrom acinzentado incomum e belo. Mas não havia ali, nenhuma flor. O tempo continuou seu curso. A moça casou. O pedido de casamento foi feito embaixo do ipê, os planos do casamento também.
- Talvez o seu buquê seja de flores de ipê, meu amor.
Era uma frase recorrente do noivo. Ela sorria, mas considerava impossível. O dia do casamento chegou e mostrou que a moça estava correta. Nenhuma flor nasceu no ipê.
Houve uma época em que o ipê ficou rebelde, os galhos estavam fracos, mais acinzentados do que belos. O ipê quase morreu. Não havia nenhuma flor nele. Foi tratado e podado. Curou-se e voltou a crescer deslumbrante, sem nenhuma flor.
A moça era agora uma mulher. Pariu seu primeiro filho. Ele cresceu forte. Aprendeu a caminhar no jardim, indo de encontro a mãe que o esperava perto do ipê, sem flores. A mulher pariu uma menina tão forte quanto o irmão e o ipê. Os filhos da mulher passaram suas infâncias sem conhecerem flores do ipê.
- Talvez não seja um ipê – comentava a vizinha invejosa da casa verde da esquina.
Ninguém mais falava na possibilidade de ser um ipê raro de flores brancas. Ninguém mais falava em flores. A mulher que já era uma senhora passou mal, os filhos a socorreram.
- Talvez a senhora deva ficar de repouso – disse o médico da família.
Lá fora, as folhas do ipê balançavam com o vento. Veio a tosse que não cedia, a senhora sentia todas as costelas. Vieram os filhos vê-la. Vieram os parentes distantes cheios de presentes e comentando como seria bom sentar debaixo do ipê, visto que, o quarto estava muito abafado. Veio o destino.
A senhora morreu em uma noite de vento que é, como dizem, noite dos mortos. Os parentes já tinham ido embora. Os filhos ficaram, o quarto nem era assim tão abafado. Na manhã seguinte, a filha foi ao quintal, buscar hortelã para um chá. Ao olhar para cima viu pequenas e belas flores brancas. O ipê tinha florescido. 

sábado, 16 de junho de 2018

Depois

Eu te vi esses dias. Muitos anos depois da gente, eu te vi passando numa manhã fria demais em um julho desses que fazem a gente não querer sair da cama antes das 10h.
Eu sei que tu estás curioso por isso vou te contar.
Tu estavas de costas com uma jaqueta cinza muito feia e parecia estar com pressa. Seu semblante era de preocupação e tu estavas de fone de ouvido.
Não me viu, tenho certeza. E escrevo essa carta sem certeza de que vou enviá-la. Talvez eu só esteja precisando muito contar isso pra ti mesmo sabendo que tu não merece que eu gaste nem tempo nem tinta de caneta ou muito menos papel com você.
Aliás, onde tu mora agora? Já nem sei mais. Não poderia te enviar essa carta e nem o VÁ SE LASCAR que eu tanto deixei preso na minha garganta.
Caso eu mande a carta saiba que a jaqueta é realmente feia e seria interessante não usar nunca mais. Eu gostava daquela de jeans ou a de couro. Mas gostos mudam. Eu gostava de você, por exemplo.
Caso tu leia essa carta por engano ou por destino saiba que agora não dá mais, independente da jaqueta que tu use ou da música que tu escolha pra tocar.
Mas... Eu acho que não vou enviar essa carta, então tudo bem.
A jaqueta vai continuar cinza e feia. E tu vai continuar preocupado ouvindo músicas e andando sem olhar pros lado.
E eu vou continuar seguindo.
Abraços.
V.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Movimento

Já havia passado das 18h e naquela época do ano o sol já tinha ido para bem longe dali e um vento fresquinho balançava as folhas da figueira ao lado.
Os dois estavam sentados, um ao lado do outro, no banco de madeira velha da Dona Carmen. A Dona Carmen não estava ali, só o banco dela. O banco dela e os dois sentados no banco. Se perguntassem para ele (mas ninguém perguntou) ele sentia o cheiro doce e quente da pele dela. Se perguntassem para ela (mas ninguém perguntou) houveram alguns silêncios constrangedores entre os dois. Nada que durasse muito, mas vocês conhecem os silêncios constrangedores: dez segundos equivalem a dez anos.

-Bom, eu vou indo então...
-Tá...
-Se quiser eu fico mais um pouquinho, tô sem horário hoje
-Eu ia gostar.
-Tá...

Ninguém se moveu. Nem mais o vento que soprava antes se atreveu a se mover. As luzes de segurança (que se alguém me perguntasse eu diria que eram ativadas por movimento) se desligaram. Os dois ficaram ali imóveis. Porém, se batimentos cardíacos ativassem luzes por movimento era bem provável que quem visse de longe poderia imaginar que havia um show de luzes ali por perto.

Atchim! 

As luzes de movimento se acenderam.
-Saúde.
-Obrigada.

Dez anos se passaram.

-Eu vou indo então
-Eu também então.

Aí eles se foram. O vento voltou a soprar logo em seguida. O banco da Dona Carmen continuou no mesmo lugar.
Naquele dia nada mudou. Mas parecia que tudo tinha mudado.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Tuas mãos

De repente uma saudade imensa das tuas mãos. Delas acenando pra mim, me puxando pra perto de ti. Das tuas mãos segurando as minhas mãos, me convidando pra entrar, me alcançando um pote de sorvete. Aquele sorvete de morango que as tuas mãos serviam pra mim e que se lambuzavam de calda de chocolate.
-Coloco calda de chocolate por cima, né? - tu sempre perguntava.
Eu fazia sinal de positivo com a mão direita.
As tuas mãos que faziam café e cafuné, arrumavam a mesa, pegavam aquele livro que ficava na estante bem alto, aquele que as tuas mãos compraram e me deram de presente.
Saudade das tuas mãos pra não dizer, que na verdade, sinto saudade de ti.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Fim

Chovia muito naquela tarde de setembro. Da janela da casa da fazenda, Catarina via, por entre as grossas gotas d'água, mais um dia se acabando.
No rádio, tocava aquela banda gaúcha "chegamos ao fim do dia, chegamos quem diria".
Catarina suspirou e o cheiro do chá de cidreira lhe entrou pelo nariz e foi até o peito, aquecendo o coração.
Naquele dia cinza, as coisas estavam estranhas, mas volta e meia todo mundo tem um dia meio assim. Meio estranho. Quando a gente se sente assim: meio pela metade.
Catarina sabia que passaria porque depois de uma noite bem dormida, tudo passa.
A chuva começou a bater forte na janela, Catarina e a fazenda inteira ouviu um trovão e depois silêncio. A chuva parara por hora. A tempestade parara por hora. A dor no peito de Catarina parara por bem mais de hora.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Ufa

Depois de toda aquela agonia, depois de um peso e de uma dor de cabeça. Depois de eu já nem saber mais o que fazer, tu veio. Eu já não aguentava mais e pedia por você o tempo todo.

Depois de muito aguardo, de quase não aguentar mais de tanta falta. Depois de tempos, tu veio como prometido.

Depois de muito tempo então choveu.

domingo, 21 de maio de 2017

Silêncio composto

-Mariana, vem que o mate tá pronto! - gritou Dona Milena, puxando o xale mais pra perto do pescoço. O frio tava daqueles de renguear cusco e ao pegar a térmica do chimarrão o xale preto de bordados coloridos quis escorregar dos ombros da dona da estância.
-Pronto! - disse Mariana entrando correndo na cozinha. As bochechas estavam vermelhas por causa de três coisas distintas. Uma era pela correria de não deixar Dona Milena esperando. A segunda era o frio que cortava a pele clarinha da guria. A terceira tinha a ver com Rodrigo. Mas Mariana preferia não pensar no caso.
-Onde tu estava guria?
-Perto dos cavalos.
Dona Milena sorriu.
-Viu meu filho?
-Rodrigo?
-Foi o único que eu pari, Mariana.
-Ah, sim. Tava lá também. Disse que já vem, vai ficar mais um pouco com o Baio.

Se abancou um silêncio leve que durou umas três cuias de chimarrão. Foi então que entraram os dois ao mesmo tempo. Pai e filho. Antônio e Rodrigo.
-Tá, mas que silêncio estranho! - disse Antônio com aquela voz de trovão.
Mariana sorriu, sempre parecia que até as coisas respeitavam a chegada de Antônio. No primeiro "bom dia" de Antônio o chão de madeira  sempre tremia em respeito.

-Que estranho nada, Antônio - replicou Dona Milena- a gente tava naquele silêncio bom do chimarrão.

Era verdade, pensou Mariana. Mas é que ela também estava lembrando doutras coisas. Seu silêncio era composto de lembranças, diferente do silêncio de Dona Milena. Olhou para Rodrigo que estava distraído mexendo nas panelas pra descobrir o que ia ter de janta. Pelego se enroscou nos pés do dono que se abaixou para acariciar as orelhas do cusco. Mariana achou que o silêncio de Rodrigo também era composto de lembranças, mas não pode ter certeza.

Antônio que não era dado à silêncios começou a contar histórias da lida do dia. Dona Milena começou a rir do jeitão do esposo. Quando percebeu-se Mariana estava também a contar histórias e a rir alto. Depois de algum tempo, ao olhar para o lado percebeu também Rodrigo que a observava e aí teve certeza. Antes, o silêncio de Rodrigo também era composto de lembranças